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Dica da semana: O Santo Inquérito


Por Ezio Frezza Filho


Alfredo de Freitas Dias Gomes, falecido em 1999, foi um homem de excelentes escritas, pelas quais ocupou merecida cadeira na Academia Brasileira de Letras. Destacou-se na dramaturgia com conhecidas obras para teatro e televisão, do porte de, respectivamente e apenas para exemplificar, O pagador de promessas (que viria a ganhar, transposta para o cinema, a Palma de Ouro de Cannes) e Roque Santeiro, novela de sucesso após a queda da censura imposta pela ditadura militar. Dias Gomes foi casado com a também escritora e dramaturga Janet Clair (sobrenome artístico inspirado em Clair de lune, de Debussy), destaque absoluto no horário nobre da televisão brasileira – Irmãos Coragem e O astro, v.g., marcaram época. Para completar uma tríade familiar de primeira grandeza, o casal deu à luz Denise Emmer, musicista capaz de compor uma pérola ímpar, Canto Lunar, magistralmente gravada pelo grupo Tarancón. Do escritor Dias Gomes temos O Santo Inquérito, texto dramatúrgico publicado em 1966, em que narra as atividades daquela que teria sido uma das incursões, em terras brasileiras, do Tribunal do Santo Ofício. Historicamente ainda pairam dúvidas sobre a vida da personagem retratada, Branca Dias: seria ela brasileira ou portuguesa? Realmente morreu queimada a mando da inquisição ou, apesar de perseguida, teria perecido naturalmente, sem interferências dos inquisidores? Afora isso, é assente na historiografia a ideia de que essa moça, de rara beleza, teria vivido na Paraíba em meados dos anos 1700, conforme os prolegômenos do próprio dramaturgo na obra em comento. Seu crime, objeto do inquérito? Teria seduzido o padre da cidade, o Padre Bernardo, com a intenção de levá-lo à quebra de seus votos. Passando ao largo destas polêmicas, Dias Gomes nos conta nesta obra ficcional que Branca, eterna apaixonada pelo namorado, Augusto Coutinho, com quem estava prestes a se casar, jamais aceitou a imputação por saber inteiramente descabida. Pensava, em sua pureza de sentimentos, que tudo não passaria de um engano, episódio que logo seria devidamente apurado pelas autoridades do lugar e ela, enfim, seria liberada das imputações. “O Santo Ofício é misericordioso e justo”, dizia ela em sua profunda religiosidade. Todavia, contrariando suas expectativas, um inquérito foi instaurado e os interrogatórios a que foi submetida se deram de modo constante e cada vez mais aterrorizador. O padre, que a acusava de impura e que a tudo assistia, não se cansava de repetir uma versão distorcida de um episódio real: enquanto se banhava nas águas do rio, fora beijado na boca, dizia ele, por Branca, que assim se insinuara ao representante terreno de Deus. Oh! Suprema heresia! Debalde eram as argumentações da inquirida, que afirmava, chorando e conforme a realidade dos fatos, que apenas salvara o padre de um afogamento, fazendo-lhe respiração boca-a-boca. “Ele estava sufocado e eu tive de colar a minha boca na dele, para fazer chegar um pouco de ar aos seus pulmões. Nós nunca nos beijamos na boca”. Era um ato de humanidade, que faria com quem assim fosse necessário, sem pretensões de lascívia. O Visitador, representante eclesiástico vindo de Portugal, comandava o Santo Inquérito; numa das incursões à casa de Branca, confiscou vários dos seus livros, incluindo uma versão da bíblia: “Também a bíblia?!”. “Em linguagem vernácula! Sim!”. E disse mais, que Branca tinha o demônio no corpo: “Mas então”, disse ela ao namorado, “eu deveria cheirar a enxofre, não a capim molhado”. Em dado momento, Padre Bernardo lhe mostra, em colóquio particular, os lábios descarnados: “Que foi isso? Seus lábios descarnados...” – e o padre lhe responde, desesperado: “Para eliminar o gosto dos seus lábios. Mas o gosto persiste. Persiste. Chego a ter alucinações” – e cai de joelhos, com o rosto entre as mãos. Não há outra interpretação, conforme a proposta da obra: Padre Bernardo estava perdidamente apaixonado por Branca, tanto assim é que, no último encontro de ambos, ele roga a Deus, em viva voz, “o perdão de minhas culpas pela Vossa infinita misericórdia”. E, dirigindo-se a Branca, faz o derradeiro apelo: “Confesse sua culpa e se salve. Salvando-se a si mesma, a mim também me salvará”. Diante das suas negativas, Branca então é levada, com a corda lhe amarrando pulso e pescoço, para o cadafalso em que despontam as primeiras labaredas. Comovente drama, que, por fim, nos faz pensar: o pecado, a impureza, a transgressão, o crime ou a heresia, seja lá o que for, está em quem? Está no investigado, no inquirido? Ou, ao contrário, está no inquisidor, ou no juiz, seja lá quem for o algoz? Essas reflexões não foram feitas por Dias Gomes. Mas, parece-nos que, de tão óbvias, nem era necessário assim indagar.


Escrito por Ezio Frezza Filho

Editado por Talita Oliveira

Organizado por Giulia Quinteiro


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